05 setembro 2006

carta anônima

Para se ler ao som de Melodia Sentimental, de Villa-Lobos cantada por Olívia Byington

Tenho trabalhado tanto, mas penso sempre em você. Mais de tardezinha que de manhã, mais naqueles dias que parecem poeira assentada aos poucos e com mais força enquanto a noite avança. Não são pensamentos escuros, embora noturnos. Tão transparentes que até parecem de vidro, vidro tão fino que, quando penso mais forte, parece que vai ficar assim clack! e quebrar em cacos, o pensamento que penso de você. Se não dormisse cedo nem estivesse quase sempre cansado, acho que esses pensamentos quase doeriam e fariam clack! de madrugada e eu me veria catando cacos de vidro entre os lençóis. Brilham, na palma da minha mão. Num deles, tem uma borboleta de asa rasgada. Noutro, um barco confundido com a linha do horizonte, onde também tem uma ilha. Não, não: acho que a ilha mora num caquinho só dela. Noutro, um punhal de jade. Coisas assim, algumas ferem, mesmo essas que são bonitas. Parecem filme, livro, quadro. Não doem porque não ameaçam. Nada que eu penso de você ameaça. Durmo cedo, nunca quebra.

Daí penso coisas bobas quando, sentado na janela do ônibus, depois de trabalhar o dia inteiro, encosto a cabeça na vidraça, deixo a paisagem correr, e penso demais em você. Quando não encontro lugar para sentar, o que é mais freqüente, e me deixava irritado, descobri um jeito engraçado de, mesmo assim, continuar pensando em você. Me seguro naquela barra de ferro, olho através das janelas que, nessa posição, só deixam ver metade do corpo das pessoas pelas calçadas, e procuro nos pés daquelas aqueles que poderiam ser os seus. (A teus pés, lembro.). E fico tão embalado que chego a me curvar, certo que são mesmo os seus pés parados em alguma parada, alguma esquina. Nunca vejo você - seria, seriam?

Boas e bobas, são as coisas todas que penso quando penso em você. Assim: de repente ao dobrar uma esquina dou de cara com você que me prega um susto de mentirinha como aqueles que as crianças pregam umas nas outras. Finjo que me assusto, você me abraça e vamos tomar um sorvete, suco de abacaxi com hortelã ou comer salada de frutas em qualquer lugar. Assim: estou pensando em você e o telefone toca e corta o meu pensamento e do outro lado do fio você me diz: estou pensando tanto em você. Digo eu também, mas não sei o que falamos em seguida porque ficamos meio encabulados, a gente tem muito pudor de parecer ridículos melosos piegas bregas românticos pueris banais. Mas no que eu penso, penso também que somos meio tudo isso, não tem jeito, é tudo que vamos dizendo, quando falamos no meu pensamento, é frágil como a voz de Olívia Byington cantando Villa-Lobos, mais perto de Mozart que de Wagner, mais Chagal que Van Gogh, mais Jarmush que Win Wenders, mais Cecília Meireles que Nelson Rodrigues.

Tenho trabalhado tanto, por isso mesmo talvez ando pensando assim em você. Brotam espaços azuis quando penso. No meu pensamento, você nunca me critica por eu ser um pouco tolo, meio melodramático, e penso então tule nuvem castelo seda perfume brisa turquesa vime. E deito a cabeça no seu colo ou você deita a cabeça no meu, tanto faz, e ficamos tanto tempo assim que a terra treme e vulcões explodem e pestes se alastram e nós nem percebemos, no umbigo do universo. Você toca minha mão, eu toco na sua.

Demora tanto que só depois de passarem três mil dias consigo olhar bem dentro dos seus olhos e é então feito mergulhar numas águas verdes tão cristalinas que têm algas na superfície ressaltadas contra a areia branca do fundo. Aqualouco, encontro pérolas. Sei que é meio idiota, mas gosto de pensar desse jeito, e se estou em pé no ônibus solto um pouco as mãos daquela barra de ferro para meu corpo balançar como se estivesse a bordo de um navio ou de você. Fecho os olhos, faz tanto bem, você não sabe. Suspiro tanto quando penso em você, chorar só choro às vezes, e é tão freqüente. Caminho mais devagar, certo que na próxima esquina, quem sabe. Não tenho tido muito tempo ultimamente, mas penso tanto em você que na hora de dormir vezemquando até sorrio e fico passando a ponta do meu dedo no lóbulo da sua orelha e repito repito em voz baixa te amo tanto dorme com os anjos. Mas depois sou eu quem dorme e sonha, sonho com os anjos. Nuvens, espaços azuis, pérolas no fundo do mar. Clack! como se fosse verdade, um beijo.

Caio Fernando Abreu
O Estado de S. Paulo, 16/03/88
Pequenas Epifanias


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ps. esse texto é lindo e poderia ter sido escrito por mim, se eu estivesse doída e fizesse clack! De qualquer jeito, alguns escritores me tocam muito. Tocam de tal modo que não há mais nada que eu possa dizer.

9 comentários:

  1. que coincidência, faz duas semanas que reli o "pequenas epifanias". incrível como CFA consegue nos fazer tão cúmplices dele através de textos assim...

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  2. Conheci o Caio através de você. Obrigada por isso. Ele sempre te traz a mim. Claro, uma coisa bela vai lembrar algo que também o seja. Gosto muito de você

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  3. "Não importa. Em dias dias muito quentes, costumo ter uma visão. Não sei se uma memória ou uma visão. De qualquer forma, em dias muito quentes, vejo claramente alguma cois
    Vc tb me apresentou a ele.

    Bjs
    Mariposã

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  4. Olá...
    Não tenha dúvida de que chegou até mim com pé direito. Amo esse texto do Caio, é de afogar a menina-dos-olhos de tanta doçura e entrega.
    Obrigada por dividir seu infinito particular...
    Beijo no coração.

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  6. Como não chorar com essa promessa de amor que há por dentro da gente? Como não sentir um clack! de dor com o prazer que nos desgasta? Bem posto menina, assim silencioso e, por isso mesmo, enorme. Para passos de dor sem ponte palavras são cordas soltas. Devaneios gostosos, aqui lhe comentando. Um beijo.

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  7. Saudades de você, saudades de mim.

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  8. SAUDADES DE CAIO FERNANDO ABREU...
    SAUDADES DE ANA CRISTINA CESAR...
    SAUDADES DO QUE INFELIZMENTE NÃO VIVI...
    esse texto tb tá na minha page...

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  9. Acho esse texto um dos mais lindos que existem.

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