11 agosto 2010

Revista Cult » História como missão

Revista Cult » História como missão

(trechos finais da entrevista na edição 149 da revista)

CULT – Passemos, então ao livro A Revolta da Vacina. No prólogo desta edição, o senhor afirma se tratar de “um livro amargo”, dado o contexto em que foi escrito, em plena ditadura militar. O senhor acredita que muito do ímpeto de indignação característico daquela geração cedeu lugar à acomodação, à manutenção do status quo?
Sevcenko –
É obviamente uma impressão pessoal porque eu venho de uma geração que lutou contra a ditadura militar, contra o obscurantismo da censura e da repressão. A juventude era estigmatizada como uma força turbulenta e “baderneira”, pois não se podia viver com espontaneidade a condição de ser jovem. Nós tínhamos a expectativa de que, quando a ditadura acabasse, toda essa enorme massa crítica ia se traduzir em um projeto de transformação do Brasil, traduzir-se em uma sociedade distributiva, democrática e inclusiva, mas absolutamente não foi isso que se deu.

O país tomou a linha de um conservadorismo que se instaurou no mundo a partir de meados dos anos 1970, em especial a partir da liderança de Ronald Reagan e Margaret Thatcher, responsáveis por trazer esse discurso que hoje domina o planeta. Então foi terrível ver toda aquela corrente de crítica, de indignação e de esperança acabar sendo reduzida a essa plataforma conservadora, representada pelas forças políticas que se tornaram hegemônicas na sociedade civil após o fim da ditadura militar.

CULT – Atualmente, o verbo “revoltar-se” tornou-se sinônimo de “nostalgia tola”?
Sevcenko –
É triste, mas é. O verbo “revoltar-se” foi muito incorporado pela indústria, pelo mercado, pelo marketing no sentido de se fazer da revolta uma espécie de atitude fashion. Ser revoltado é o modo esperto de se assumir a juventude, aquilo que na linguagem do marketing se chama atitude. Infelizmente tudo a ver com roupas, marcas e estilos, nada a ver com conteúdo e substância. Até a revolta se tornou mercadoria.

CULT – À época da Revolta da Vacina, já se mostraram ineficazes os meios de se lidar com nossas mazelas sem se preocupar efetivamente com a raiz do problema. Passados mais de cem anos, ainda não aprendemos a lição?
Sevcenko –
Quando escrevi o livro, eu o dediquei aos mortos da tragédia de Vila Socó, ocorrida em 1983, em Cubatão. Naquela ocasião houve um vazamento nas redes de distribuição de derivados de petróleo das refinarias e a população pobre da região foi se abastecer daquele combustível precioso. A favela se expandiu em cima das áreas ensopadas e as poucas pessoas que tentaram fazer alguma espécie de clamor para que a autoridade pública removesse a população dali não obtiveram sucesso. O fato é que ninguém tinha coragem de atacar o problema, muito menos a autoridade pública, pois ela negocia votos. Logo, quanto mais gente morasse lá, mais votos. Então aquilo cresceu exponencialmente até o dia em que virou uma tocha e todo mundo que estava ali foi reduzido a cinzas.

Quantas dessas tragédias anunciadas no Brasil se tornam moeda de negociação política? Por que proliferam essas construções em áreas de risco, onde qualquer alteração das condições atmosféricas ou do regime das águas vai causar uma tragédia? Porque justamente são áreas que se valorizam no mercado informal e atraem uma grande quantidade de pessoas, tornando mais fácil para as autoridades criar um sentido de negociação. Tolera-se que se assentem lá e isso significa que estarão em dívida e, portanto, terão que respaldar essas autoridades nas eleições.

CULT – O senhor acredita que por trás do discurso assistencialista à pobreza está, sobretudo, o desejo de preservá-la enquanto elemento essencial para a manutenção do nosso sistema político?
Sevcenko –
Sim, é isso que eu chamo de política assistencial remediadora. Não se quer eliminar a pobreza. O que se quer é um modo de se administrar a desigualdade para que ela se torne uma estrutura de manutenção do status quo político. Status esse que prevalece no país e não é muito diferente daquele que ensejou a Revolta da Vacina no início da República. Se então pensarmos ou na Revolta da Vacina ou na Vila Socó ou nas enchentes desencadeadas do sul até o extremo norte do país, estamos vendo o fenômeno em uma estrutura que se mantém a mesma, por mais que se diga que há um discurso de reforma e de transformação social.

CULT – A exemplo do que foi feito nos primórdios da Primeira República, o Brasil ainda busca ocultar a todo custo o flagelo da escravidão?
Sevcenko –
Eu acho que sim. Ela é na verdade a nossa herança maldita, a nossa dívida social que o país não consegue contemplar. Essa estrutura retrógrada praticamente nunca foi confrontada e nunca foi substancialmente transformada na passagem do período monárquico para o período republicano. Quando se objetivava fazer a transição do trabalho escravo para o trabalho assalariado, optou-se imediatamente pelo trabalho assalariado do imigrante europeu, deixando completamente à margem toda essa enorme população egressa da escravidão, como uma espécie de um estorvo social. Fica muito evidente, no contexto da Revolta da Vacina, como o país não tinha uma resposta para sair da escravidão na direção da construção de uma sociedade integrada, equilibrada e distributiva.

Se olharmos para a história subsequente e pensarmos na condição dos trabalhadores sazonais hoje em dia – como os cortadores de cana que trabalham em condições subumanas, arrastando em suas costas o sucesso do agronegócio brasileiro –, veremos que não estamos tão longe assim das condições de escravidão. Infelizmente o quadro é de profunda indignidade. E dizer que este país é todo dedicado à promoção social hoje em dia? Isso não só é uma inverdade, mas uma afronta.

A Revolta da Vacina
Nicolau Sevcenko
144 págs.
R$ 37