30 setembro 2006

página íntima e de auto-interpretação

Faltando menos que 1 mês para os meus 32, penso já - mas não desejo tão rápido - que me aproximarei da idade de Cristo crucificado. Não peço nada, só quero atravessar minha vida a pé, como se atravessasse um parque, um campo com muitas árvores e algumas flores, com um riozinho correndo. Eu disse que não pedia nada... Mas eu troco tudo isso. Basta eu encontrar você no caminho. Gosto de estar perto de você e entrar numa.

Ando terrivelmente inquieta. E cansada de gente treinada para ser evasiva e oculta. Gente tão sensível quanto uma porca velha. Com você eu encontro a leveza. Andando por aí, nas ruas, na praia, tomando café, folheando livros, falando sobre música, dançando na sala pouco iluminada, boca lasciva, olhos que giram em órbita, você vertendo seus fluidos como caldo quente.

Quem sabe o que é perigoso? Quando nos defendemos de nossos próprios medos e dúvidas, fazemos mal aos outros também. Tem quem precise de alguém, e a isso chame o nome amor. Que os céus permitam converter essa frustração em alguma coisa útil... Leia. Escreva. Escrevo e leio muito. Solto meus monstros. Antes um livro monstruoso que uma vida monstruosa. Não, não sou tão inteligente quanto tento parecer. Sou presunçosa. Mas não se engane, posso ser sua escrava sexual e, ainda assim, dominar você. Mas não se engane de novo, porque dominar os outros não me interessa. É a mim que eu tento dominar. Sei que sou paratática. Gosto de colagens. E tenho mais curiosidade sobre as pessoas do que a maioria jamais terá. A maioria se aborrece muito depressa. Eu me aborreço com atrasos. Vivo me atrasando. Ela sabe disso, eu sei. Ela sabe muito sobre mim. Sabe ser firme comigo quando é preciso. Sabe quando eu quero putaria... Ela é que me dá força, ela é que me dá asas, ela me dá em casa ou em qualquer lugar.

No metrô, a melhor coisa mesmo é ter um livro. São 18 minutos (contando com a baldeação) isenta de alguns males que assolam as pessoas. Se formos pensar em todos os males do mundo moderno, um vestígio de caspa, e sucumbiremos como ratos envenenados.

Será possível amar pessoas para sempre? Alguém que me inspire o amor, é capaz de inspirar o amor de outra pessoa. Não é crime. "O verdadeiro crime é fazer alguém acreditar que é a única pessoa que poderemos amar", disse o senhor Miller. Sim, é possível amar pessoas para sempre. Sem temer a posição dos astros, sem tempo, sem dia ruim, sem exigir o mesmo amor de volta, sem regulamentos. Clarice me complementa. "Ao passo que amar eu posso até a hora morrer. Amar não acaba. É como se o mundo estivesse a minha espera. E eu vou ao encontro do que me espera".

Sim, todas as cartas de amor são ridículas. Não seriam cartas de amor se não fossem ridículas. Os posts de amor, como as cartas de amor, são ridículos. "Dizem que tô louca por te querer assim, por pedir tão pouco e me dar por feliz. Dizem que tô louca, que você manda em mim, mas não me convencem, não, que seja tão ruim".

Mas, afinal, só as criaturas que nunca escreveram cartas de amor é que são ridículas.

Ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber amor em troca. Que assim seja.


Todo dia massacramos nossos melhores impulsos. E é por isso que sentimos uma dor no coração sempre que lemos as linhas escritas pela mão de um mestre e as reconhecmos como nossas, como os tenros brotos que sufocamos porque nos faltava a fé em nossos próprios poderes, em nossos critérios de verdade e beleza. Todo homem, quando se aquieta, quando é desesperadamente honesto consigo mesmo, pode proferir verdades profundas. Todos derivamos da mesma fonte. Não há mistério quanto à origem das coisas. Todos somos parte da criação, todos reis, todos poetas, todos os músicos; precisamos apenas nos abrir, para descobrir o que já estava lá. (Sexus, Henry Miller)

05 setembro 2006

carta anônima

Para se ler ao som de Melodia Sentimental, de Villa-Lobos cantada por Olívia Byington

Tenho trabalhado tanto, mas penso sempre em você. Mais de tardezinha que de manhã, mais naqueles dias que parecem poeira assentada aos poucos e com mais força enquanto a noite avança. Não são pensamentos escuros, embora noturnos. Tão transparentes que até parecem de vidro, vidro tão fino que, quando penso mais forte, parece que vai ficar assim clack! e quebrar em cacos, o pensamento que penso de você. Se não dormisse cedo nem estivesse quase sempre cansado, acho que esses pensamentos quase doeriam e fariam clack! de madrugada e eu me veria catando cacos de vidro entre os lençóis. Brilham, na palma da minha mão. Num deles, tem uma borboleta de asa rasgada. Noutro, um barco confundido com a linha do horizonte, onde também tem uma ilha. Não, não: acho que a ilha mora num caquinho só dela. Noutro, um punhal de jade. Coisas assim, algumas ferem, mesmo essas que são bonitas. Parecem filme, livro, quadro. Não doem porque não ameaçam. Nada que eu penso de você ameaça. Durmo cedo, nunca quebra.

Daí penso coisas bobas quando, sentado na janela do ônibus, depois de trabalhar o dia inteiro, encosto a cabeça na vidraça, deixo a paisagem correr, e penso demais em você. Quando não encontro lugar para sentar, o que é mais freqüente, e me deixava irritado, descobri um jeito engraçado de, mesmo assim, continuar pensando em você. Me seguro naquela barra de ferro, olho através das janelas que, nessa posição, só deixam ver metade do corpo das pessoas pelas calçadas, e procuro nos pés daquelas aqueles que poderiam ser os seus. (A teus pés, lembro.). E fico tão embalado que chego a me curvar, certo que são mesmo os seus pés parados em alguma parada, alguma esquina. Nunca vejo você - seria, seriam?

Boas e bobas, são as coisas todas que penso quando penso em você. Assim: de repente ao dobrar uma esquina dou de cara com você que me prega um susto de mentirinha como aqueles que as crianças pregam umas nas outras. Finjo que me assusto, você me abraça e vamos tomar um sorvete, suco de abacaxi com hortelã ou comer salada de frutas em qualquer lugar. Assim: estou pensando em você e o telefone toca e corta o meu pensamento e do outro lado do fio você me diz: estou pensando tanto em você. Digo eu também, mas não sei o que falamos em seguida porque ficamos meio encabulados, a gente tem muito pudor de parecer ridículos melosos piegas bregas românticos pueris banais. Mas no que eu penso, penso também que somos meio tudo isso, não tem jeito, é tudo que vamos dizendo, quando falamos no meu pensamento, é frágil como a voz de Olívia Byington cantando Villa-Lobos, mais perto de Mozart que de Wagner, mais Chagal que Van Gogh, mais Jarmush que Win Wenders, mais Cecília Meireles que Nelson Rodrigues.

Tenho trabalhado tanto, por isso mesmo talvez ando pensando assim em você. Brotam espaços azuis quando penso. No meu pensamento, você nunca me critica por eu ser um pouco tolo, meio melodramático, e penso então tule nuvem castelo seda perfume brisa turquesa vime. E deito a cabeça no seu colo ou você deita a cabeça no meu, tanto faz, e ficamos tanto tempo assim que a terra treme e vulcões explodem e pestes se alastram e nós nem percebemos, no umbigo do universo. Você toca minha mão, eu toco na sua.

Demora tanto que só depois de passarem três mil dias consigo olhar bem dentro dos seus olhos e é então feito mergulhar numas águas verdes tão cristalinas que têm algas na superfície ressaltadas contra a areia branca do fundo. Aqualouco, encontro pérolas. Sei que é meio idiota, mas gosto de pensar desse jeito, e se estou em pé no ônibus solto um pouco as mãos daquela barra de ferro para meu corpo balançar como se estivesse a bordo de um navio ou de você. Fecho os olhos, faz tanto bem, você não sabe. Suspiro tanto quando penso em você, chorar só choro às vezes, e é tão freqüente. Caminho mais devagar, certo que na próxima esquina, quem sabe. Não tenho tido muito tempo ultimamente, mas penso tanto em você que na hora de dormir vezemquando até sorrio e fico passando a ponta do meu dedo no lóbulo da sua orelha e repito repito em voz baixa te amo tanto dorme com os anjos. Mas depois sou eu quem dorme e sonha, sonho com os anjos. Nuvens, espaços azuis, pérolas no fundo do mar. Clack! como se fosse verdade, um beijo.

Caio Fernando Abreu
O Estado de S. Paulo, 16/03/88
Pequenas Epifanias


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ps. esse texto é lindo e poderia ter sido escrito por mim, se eu estivesse doída e fizesse clack! De qualquer jeito, alguns escritores me tocam muito. Tocam de tal modo que não há mais nada que eu possa dizer.