16 dezembro 2010

amar e esganar você

Sabe quando o amor vem querendo seguir para sempre, como um barco com céu estrelado? A liberdade de seguir. Tudo pode ser dito. Tudo pode ser experimentado. Esses momentos que não são só ouvidos, são convertidos nesta história que você e eu contamos sobre nós mesmas.
Falar com quem se ama é estupidamente diferente de falar com qualquer outra pessoa. Viver é diferente. Nem sempre é fácil, você e eu sabemos. O caminho é tortuoso, matamos dragões no mundo que criamos juntas, mas é doce. É doce até quando achamos que perdemos a doçura. O amor também é isso. E amar você é me interessar por você, me preocupar com você, querer te ouvir a todo instante, é desejar dançar com você coladinha, é te compreender, conhecer o seu espaço, conhecer os seus gestos, é achar que você tem que me aturar e me suportar quando nem eu mesma me suporto. Sentir o cuidado que existe na consciência que você tem do que eu posso estar sentindo, mas não consigo definir. Sentir o cuidado, teu cuidado, na disposição e suavidade de penetrar no meu mundo, e me abrir os braços.
Têm dias que eu sinto tanta saudade que sufoca. Aflição de poder depressa ficar só com você. E têm dias que eu sufoco com você.
Hum-rum...
Mesmo te amando, posso sentir emoções contraditórias. Posso ter raiva de você por quase um segundo, posso ter vontade de esganar você por quase um segundo. Depois te amo mais... É assim que esse amor pode ser a coisa mais delicada e simples do mundo. E a coisa mais irritante também.
Quais são as cores e as coisas pra te prender? Minhocas na minha cabeça dizem que para tão longo amor, tão curta me parece essa vida. E eu nem mesmo sabia que minhocas falavam.
Vem cá enroscar suas pernas em mim. Vem que eu quero deslizar meus dedos pra dentro da sua calcinha... Sentir teu mundo balançar. Tem um tesão em mim que parece mentira... Se você apenas me der a sua mão, eu não vou pedir mais nada. Algumas vezes, mais do que qualquer outra coisa, você me dá a mão. Isso é amor.
Você alegra absurdamente esse meu coração.


  * Publicado em maio de 2007. 
** Para aquela que continua alegrando o meu coração.

01 dezembro 2010

além do ponto

Chovia, chovia, chovia e eu ia indo por dentro da chuva ao encontro dele, sem guarda-chuva nem nada, eu sempre perdia todos pelos bares, só levava uma garrafa de conhaque barato apertada contra o peito, parece falso dito desse jeito, mas bem assim eu ia pelo meio da chuva, uma garrafa de conhaque na mão e um maço de cigarros molhados no bolso. Teve uma hora que eu podia ter tomado um táxi, mas não era muito longe, e se eu tomasse um táxi não poderia comprar cigarros nem conhaque, e eu pensei com força então que seria melhor chegar molhado da chuva, porque aí beberíamos o conhaque, fazia frio, nem tanto frio, mais umidade entrando pelo pano das roupas, pela sola fina esburacada dos sapatos, e fumaríamos beberíamos sem medidas, haveria música, sempre aquelas vozes roucas, aquele sax gemido e o olho dele posto em cima de mim, ducha morna distendendo meus músculos. Mas chovia ainda, meus olhos ardiam de frio, o nariz começava a escorrer, eu limpava com as costas das mãos e o líquido do nariz endurecia logo sobre os pêlos, eu enfiava as mãos avermelhadas no fundo dos bolsos e ia indo, eu ia indo e pulando as poças d'água com as pernas geladas. Tão geladas as pernas e os braços e a cara que pensei em abrir a garrafa para beber um gole, mas não queria chegar na casa dele meio bêbado, hálito fedendo, não queria que ele pensasse que eu andava bebendo, e eu andava, todo dia um bom pretexto, e fui pensando também que ele ia pensar que eu andava sem dinheiro, chegando a pé naquela chuva toda, e eu andava, estômago dolorido de fome, e eu não queria que ele pensasse que eu andava insone, e eu andava, roxas olheiras, teria que ter cuidado com o lábio inferior ao sorrir, se sorrisse, e quase certamente sim, quando o encontrasse, para que não visse o dente quebrado e pensasse que eu andava relaxando, sem ir ao dentista, e eu andava, e tudo que eu andava fazendo e sendo eu não queria que ele visse nem soubesse, mas depois de pensar isso me deu um desgosto porque fui percebendo percebendo, por dentro da chuva, que talvez eu não quisesse que ele soubesse que eu era eu, e eu era. [...]
(Fragmento do conto Além do ponto, Caio Fernando Abreu.)