27 fevereiro 2005

fora de hora

"Não havia mais nenhuma razão especial para me lembrar de tudo isso, e embora eu gostasse de escrever esporadicamente e alguns amigos aprovassem minhas histórias, eu me perguntava às vezes se essas recordações de infância mereciam ser escritas, se não provinham da ingênua tendência para acreditar que as coisas tinham sido mais reais quando as punha em palavras para fixá-las ali como gravatas no armário ou o corpo de Felisa à noite, algo que não poderia ser novamente vivido, mas que se tornava mais presente como se na mera lembrança se abrisse passagem para uma terceira dimensão, uma quase sempre amarga mas tão desejada aproximação. Nunca soube bem por quê, mas de vez em quando voltava a coisas que outros tinham aprendido a esquecer para não se arrastar na vida com tanto tempo sobre os ombros."

(Julio Cortázar, Fora de Hora, p. 107)

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"Tanto tempo sobre os ombros". Eu tiraria o tanto. Tempo sobre os ombros é o que me faz continuar. Não evito o tempo que passou. A verdade é que gosto de todo ele. O tempo passado, possivelmente, ajuda-me a sentir-me melhor, deixar minha vida em ordem, dentro do possível. Mesmo os farrapos soltos, mesmo os vazios. O pior é que não consigo me convencer do contrário.

Não evito o tempo passado, mas não pense que o procuro sempre. Procurar o tempo passado é sempre cair de novo em mim mesma. E viajo à roda da minha vida. E daí acrescento Machado de Assis, explicando a carteira de experiências que misturava dentro de si:

"Creiam-me: o menos mau é recordar; ninguém se fie da felicidade presente; há nela uma gota da baba de Caim. Corrido o tempo e cessado o espasmo, então, sim, então talvez se pode gozar deveras, porque entre uma e outra dessas duas ilusões, melhor é que se goza sem doer."

O passado é indolor. Repassar a vida é indolor. Com bondade para perdoar culpas e erros e tolerância para os dissabores. O tempo me transforma em espectadora da minha própria vida.

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